Estórias de um homem do mar... (1ª entrevista)


Estórias de um homem do mar...


       Seu Renato, sua história...

Nasci no distrito de Marechal Deodoro. Tinha uma irmã que deu um passeio por aqui, ficou gostando e trouxe a família toda para o Pontal da Barra. Eu tinha dois anos quando vim, há setenta e nove anos que moro aqui. Meu pai veio para cá e vivia da roça. Eu aprendi a pescar com os colegas. Sou pai de quartoze filhos: treze mulheres e um homem.
A minha mãe criou nove filhos, fazia bisaco (sacola de tecido, VCR) e comida para vender. Eu amanhecia o dia pescando. Quando vinha da pescaria de manhã, ela já tava com o tabuleiro para eu ir gritar e vender. Saía daqui para vender lá no cais do porto: angu; beiju e cuscuz para ajudar minha mãe e meus irmãos.
Quando cheguei aqui às casas eram todas de taipa, de palha. Agora remodelou foi tudo, tem muito novato. Na minha época todos eram pescadores e as mulheres trabalhavam com o filé. Naquele tempo não entrava carro aqui. Era muita areia. Tinha nos caminhos pé de algodão seda, pé-de-carapateira. Os caras não queriam vim porque atolavam os carros. Tinham medo.
Eu saía daqui para ir treinar no campo do CSA. Terminava o treino era de dez e meia para onze, era na hora do último bonde, a gente perdia. Arrastava do Mutange até o Pontal a pés (caminhando, VCR). Quando a gente chegava, em vez de descansar, tomava um banho, fazia um lanche e ia pescar para arrumar o dinheirinho do pão de manhã, para não ir a venda comprar fiado.
Eu tinha que ajudar minha mãe, o CSA não pagava nada. Eu tinha aquela vontade de treinar para vê se pegava uma vagazinha e ir em frente. Não joguei no CSA, mas joguei muito na segunda divisão. Fui primeiro lugar na segunda divisão com o time Novo Horizonte. Ganhei na posição de zagueiro. Esse time deu os melhores atletas, até para o Rio de Janeiro. Teve uns quatros que foram campeões, foi “bater” em São Paulo. A estrela do cara quando é assim... Hoje em dia futebol tá a maior facilidade, pegam logo um garoto que tá jogando uma bolinha e levam.
Eu com essa que estou casado a sessenta anos. O cara que é moço gosta de dar uns passeios, namorava ela e com mais duas ou três. Passava quinze dias sem conversa com essa que sou casado, aí ela dizia: “Rapaz, já tá com outra?”, e eu respondia: “Não”. Eu pescava com o melhor pescador do norte e nordeste, chamava-se Antônio Viana, o apelido dele era Antônio Curió. Era o melhor tarafeiro, tarafa de vinte e tantas braças, 8kg de chumbo. Eu tinha intenção de casar com ela, então se não chegasse na hora que o Antônio Curió dizia, tinha três para pegar aquela vaga. Como eu queria casar com ela, trabalhando com ele tinha um “tutuzinho” (dinheiro) melhor.
Faço parte do Fandango. Lá eu toco surdão, tamborim e pandeiro. O pandeirista morreu, então agora eu estou no pandeiro. Quando o cara do surdo não pode ir eu assumo o lugar tocando o surdo. É assim: varia.

     Estórias de um velho pescador...

Esse lugar aqui é rico. Passa fome quem for preguiçoso, porquê de tudo nós temos aqui. Dá todo tipo de peixe, também temos massunin e marisco. No mangue temos o carangueijo Uçá. Quando a pescaria arruínava a gente para puder “safar mais a onça” pegava o uçá. A gente no mangue tirava o uçá do buraco, quem não sabia esperava saírem para pegar. Do próprio mangue a gente tirava uma galhazinha com duas ou três folhas, colocávamos na boca do buraco, balançava, balançava. Quando saíam do buracão a gente pegava com a mão.
Aqui a pesca é mais de tarrafa. Com a rede é mais no mar. Quando arruína aqui a gente vai buscar fora. Para pescar aqui ultimamente tá melhor no inverno, antes era o verão.  As águas do verão limpam muito, fica mais difícil pega o peixe, porque estão mais sabidos.
No meu tempo era muito bom isso aqui. Era um remo com vinte e dois palmos e não tomava pé. Barra de areia, já sabe né! Quando a barra é de pedra que fica de um lado e do outro, não vai nem pra lá e nem pra cá. Barra de areia no verão desce todinha para o sul, no verão para o norte. O fundo da lagoa vai mudando, aqui nunca foi drenado, isso aqui era para ser drenado. Se dragasse melhorava muito, aprofundava e o peixe tinha onde ficar, e assim não. Pescaria hoje em dia tá explorada demais. Aí fora principalmente com aqueles arrastões.
O peixe é vendido aqui na colônia. Aqui é muito para o consumo, não tem venda grande de peixe. Nosso peixe mesmo, daqui da lagoa é dez vezes melhor do que os que vêm de fora. Aqui o peixe tem o que comer, tem aquele lodinho nas croas, nos bancos. A arraia quebra muita taoba para comer, então sai aquele granitozinho para o peixe beliscar.
Não tenho saudades de pescar. Eu sofri muito nessa vida. Pesquei durante uns cinqüenta anos ou mais. Pesquei todo tipo de peixe, mais esses grandes se pescam com rede. Eu pescava com tarafa, trazia a canoa de canto a canto. Chegava aqui no porto e dizia para o colega: “Leve as tarafas que vou aqui na venda”. Deixava a canoa com peixe, com tudo, ia para a venda tomar cana. Eu bebia muito, difícil um pescador que não bebe.  Anima mais a gente, mas só tomava branquinha. Tomava um copo de cachaça em dois goles, duas lapadas.
Quando eu chegava aqui no porto, os caras diziam: “Renato, Renato, vamos tomar uma?”, eu respondia: “Quero não”. Quando olhava para o balcão deles, só tinha meiota de cachaça, eu digo cá comigo: “Se tomar a meiota eles vão se revoltar comigo”. O meu sentido era esse, tomar a meiota de uma vez e fica animado, bem, assim eu fazia. Eles ficavam todos revoltados, então eu chegava na venda e dizia; “bota um tubo para os meninos aí”. Ih! Virgem Maria! Eu era o maior.
O pior dessa vida é a noite, não é brincadeira não, no inverno você sai cinco horas da tarde e volta molhado das cabeças aos pés. Quando eu chegava em casa minha mãe olhava para as minhas mãos, uma mãozona grossa, de tanta chuva e de remar a noite todinha. Ela olhava para mim e começava a chorar, eu dizia: “Mãe, quando Deus quiser as coisas melhoram”.

      Seu Renato e o Pontal da Barra: uma estória de luta e superação.

O barco com turistas teve um pescador, o nome dele era Evandro, foi quem começou esse passeio. Ele se deu muito bem no ramo. Sabe que hoje em dia tudo é aquele olhão? O povo dizia: “Fulano tá enricando, vou consegui um também”, e nisso vai, mas nem todos tinham jeito e muitos voltaram a ser pescador. Isso começou numa faixa de uns quarenta anos atrás. Foi no início da cooperativa, o pessoal começou a andar por aqui.  O pessoal que tinha carro vinha para fazer o passeio.
Aqui primeiro era na areia, depois no barro. O barro foi na época de Silvestre Péricles quando era governador de Alagoas. O asfalto e a luz foi o Arnon de Mello. Aqui a gente não tinha luz, a gente usava olviteiro, como se chamava antigamente aqueles candeeirinho. Teve um colega, chamava-se José Lúcio, disse que só queria ser vivo no dia que chegasse luz no Pontal da Barra, aí o Arnon de Mello, quando pensou que não, seis horas, certinho, seis horas, se acendeu as luzes, tudinha. O que disse morreu na hora, tinha dito que só queria ser vivo na hora que chegasse luz no Pontal, Deus castigou.  
Os ônibus vieram depois de muito tempo. A gente saía daqui de canoa ou a pés para pegar o bonde no Trapiche. Aqui era simples, não tinha praça, depois de muitos anos foi que fizeram.

       O Pontal dos anos 50

Pra se divertir o cara “queimava cana”. Tinha baile, mas era muito parado porque existia muito respeito. Na situação que estamos agora, nós quatro, mulher não chegava perto, arrodeava para puder passar. A senhora aqui conversando no meio de três homens como está agora não podia, havia muito respeito.  A senhora não me leve a mal, mas a mulher hoje em dia tá mais viva e mais traíra do que o homem. Tá mais fácil do que naquele tempo.
A gente se divertia na festa do padroeiro (São Sebastião) e no aniversário de algum colega, mas se fosse de menor não podia ir. Era uma ignorância. Naquele tempo tinha baiana, fandango, pastoril. Quem morasse da igreja para lá, se passasse pra cá o pau comia. E os daqui se passassem pra lá da igreja o pau comia também. Aqui era conhecido como: a terra dos índios. Era ignorância do povo. Era um querendo ser melhor do que o outro. Hoje tá tranquilo, mas ainda tem, quando um daqui faz uma brincadeira, eles lá têm que fazer uma melhor para barrar a daqui. Ainda existe essa politicazinha nojenta. 


Obs.: Entrevista com Seu Renato (pescador do bairro Pontal). Essa entrevista fez parte do projeto Cultura de Bairro, realizado de dezembro de 2009 à março de 2010, teve como pesquisadores: Viviane Rodrigues, Jorge Schutze e Denivan Costa. Contou com o patrocícnio da Brasken.